29 de agosto de 2020

A SANTINHA DE FAFE Uma figura do tempo de Ruy Monte

Reprodução do jornal, "Justiça de Fafe",  “Justiça de Fafe”,  21 de Dezembro de 1978

A Santinha de Fafe

«Onde isso vai!

Onde vai já a minha fé de criança!

Acreditava em tudo… Até acreditava nos homens!...

Hoje nem em mim acredito!

Os santos e os médicos julgava-os então parceiros ou sócios (mas não concorrentes desleais), a curar os nossos achaques e os nossos males.

E, com a mesma fé, comprava óculo para a vista e fazia promessas a S.ta Luzia.

Que feliz eu era então!

- Que era ingénuo… que era um simplório… que não raciocinava… que era talvez um lorpa – direis vós.

Pois era, meus amigos, pois era… mas, nesse mundo de fantasmas, santinhos e bruxas, eu sonhava, eu não sofria os tormentos da dúvida… eu era feliz, como uma criança, no reino dos seus brinquedos.

Que me deram a vida e a ciência em troca?

- Um presente de desilusões e cepticismo… e um futuro de desesperos e aniquilação.

Ora bolas para a troca…

 

 

Vem isto a propósito da Santinha de Fafe.

Conhecem-na?

Conhecia-a eu muito bem, nas minhas idas e vindas, da Escola de Castilhão, com o meu bibe ao vento, a sacola aos ombros e 8 anos de saúde de ferro e estômago de avestruz.

Aquele seu quartito todo branco, como aquela alminha de Deus toda branca, brancas as roupas, branco o rosto e as mãos, branco o tecto… e, no meio daquela brancu7ra toda, uma frescura imaculada, um sorriso que parecia do céu e uns olhos vivos e irresistíveis que nos chamavam, daquela cama de sofrimento, como um íman a que ninguém fugia.

E todos lhe perguntávamos, eu e os meus companheiros, e toda a gente afinal, suspensos das suas palavras, que também pareciam imaculadas e brancas:

-A santinha ainda não comeu hoje?

A resposta, a sorrir, era sempre a mesma:

Pois não, meus meninos.

Eu não como nem bebo.

E eu mais atrevido:

- Então também não faz chi-chi – nem có-có?

- Pois não, meus anjinhos.

Ela mergulhava nas suas orações brancas… e nós ficávamos em êxtase, no sétimo céu da inocência feliz.

 

Nessa idade, era eu um diabrete de tal força que apanhava seis tareias, por dia: três na aula e três em casa!

A minha santa mãe, que Deus haja, já desesperada, lembrou-se de pedir um milagre à santinha.

Certo dia, lá fomos os dois.

Minha mãe falou-lhe ao ouvido… e ela sorriu.

Que si… que sim. Que sossegasse a senhora Mariquinhas, que ela me ia tomar à sua conta.

E começou a rezar o seu tercinho branco, diante de nós…

 

Não levou muito tempo que minha mãe acreditasse no milagre. Comecei a apanhar só uma vez por dia!

E mais ainda se convenceu, quando aos 12 anos, despertou em mim o desejo de ser padre, desejo que veio dela certamente e durou nada menos de 10 anos de sonho.

O pior foi que a Santinha morreu.

Surgiu, na minha vida de homem feito, outra santa… menos branca talvez… mas mais irresistível.

E lá foi a minha vocação para as malvas…

Mas quem me dera que o tempo voltasse para trás, que a Santinha ressuscitasse e voltasse àquele quartinho branco! Que eu, de novo estreasse um bibe ao vento e partisse a cachola aos meus companheiros! E que minha mãe tornasse a acreditar nos milagres!

Mesmo que voltasse às seis tareias por dia…»


Por Ruy Monte

In: jornal “Justiça de Fafe”, nº 118, 21 de Dezembro de 1978

O episódio da "santinha de Fafe" aqui relatado remonta a c. de 1910.


 

«Frente ao nº 9 da Rua da Seara, em Fafe, param
amiudamente autos luxuosos e deles se apeiam 
senhoras e creanças, vindas das cidades, para consultar a «santinha»
 
Reprodução da revista "Ilustração", nº 44, Lisboa, 16 de Outubro de 1927.



 

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