ALBINO SILVA
Nesse tempo – vai para 50 anos – ainda não havia Secretaria Judicial e os cartórios dos escrivães-notáveis espalhavam-se pela vila, em edifícios particulares.
Estou a ver o do Dourado, ali no Largo e o do Albino Leite Silva, nos baixos do Clube Fafense, à esquina que deita para a loja do saudoso Bernardino Monteiro, hoje do meu amigo Antoninho das Lobas.
O Dourado, pausado no andar e delicado no trato, era uma verdadeira figura de aristocrata e conservador, no físico e no moral.
Albino Leite da Silva era o retrato vivo do republicano irreverente e democrático dessa época. O físico, o rosto irregular e anguloso, olhos muito vivos e boca escancarada num sorriso sempre sardónico, convidava à discussão e à anedota.
Eram ambos duas figuras típicas e de destaque da nossa terra.
Embora sem o título de Dr., hoje um pouco desacreditado em medíocres sem conta, Albino Leite não era nada troixa, tinha uma razoável cultura de autodidacta e nascera para jornalista.
Fundara-se, na nossa vila, por esse tempo, um belo jornal do Partido Republicano Português, a “Democracia, uma das publicações semanais fafenses mais bem feitas de todos os tempos.
O artigo de fundo costumava ser sensato e pensado. A polémica política e religiosa era desabrida e, por vezes, temperamental. Mas os soltos da crítica e do dia-a-dia brilhavam pela graça, malícia e manha.
Pois Albino Leite passava por ser (e era-o de facto), o redactor mais fecundo e feliz.
Onde estivesse, borbotava a anedota e explodia a gargalhada.
Era, por isso, muito procurada a sua companhia.
Um dia, certo mister, inglês endinheirado, procurou-o no cartório, para cicerone duma visita à nossa vila,
- All right, My Lord, com todo o gosto.
Deixando o cartório entregue àquele simpático moço, que todos nós conhecíamos e estimávamos, o Moura de Silvares, lá partiram os dois.
O roteiro começou, naturalmente, pelo jardim do Calvário.
Mister ter gostado muito e ter feito questão de andar de barco.
- Que pena não ser maior, para poder fazer regatas Fafe!
Albino Leite gozava como um preto e comungava, com muitos «pois» e acenos de cabeça, nas críticas e impressões do Beef.
A Rua de Baixo cheirou-lhe mal. O Retiro escandalizou-o. Revoltou-se com a igreja nova incompleta. E abriu, a boca diante da Fábrica do Ferro, que julgou só poder existir na Inglaterra.
Checaram finalmente ao nosso Hospital.
Recebeu-os o Dr. Álvaro Pinto, no seu à-vontade característico.
Mister cumprimentou os doentes, quis apalpar as camas e provou a sopa do dia.
Entraram depois na capela.
Uma bela imagem de Nossa Senhora, ainda lá estava à tempos, velando os que sofrem.
Perguntou o inglês:
- Quem ser esta senhora?
- É a virgem Maria, esposa de S. José e mãe de Cristo – correu a informar o cicerone, muito sério.
Cumprimentou-a com uma vénia e rodaram para a cadeia velha, que ficava, como sabem, em frente.
Não gostou da sua falta de higiene, mas ficou chocado com a rica escultura de S. José que dominava a capela.
- Que ser este cavalheiro?
- Este é o marido daquela senhora que está no Hospital.
- Belo homem… mas ser mais velho que a senhora!
- Era mais velho, era… mas davam-se bem – comentou o cicerone.
Minutos depois, deram entrada no nosso cemitério. Achou-o muito limpo, bem situado e algo tanto monumental.
Visitaram a capela. Ao fundo, um grande Cristo ainda hoje agoniza e morre crucificado.
Nova pergunta do Mister:
- E quem ser este pobre homem?
Acode logo Albino Leite:
- Este é o filho daquela mãe que vimos no Hospital e daquele pai que está na cadeia.
O inglês murmurou, sinceramente:
- Pobre família!
Albino Leite, zombeteiro e um tanto ateu, como então era moda, não pôde deixar de concordar:
- Realmente, realmente… a mãe no Hospital, o pai na Cadeia e o filho no Cemitério…
Pobre família!
O inglês concluiu, muito pesaroso:
- Dizer bem, dizer bem, senhor Albina. Pobre família!
E foram desafogar a mágoa, com cerveja, no café do Álvaro Figurão.
RUY MONTE
In jornal “Justiça de Fafe”, nº 117, 7 de Dezembro de 1978.
NOTA: Os acontecimentos relatados nesta crónica remontam, grosso modo, ao ano de 1928. Teria Laurentino Alves Monteiro (Ruy Monte), 26 anos de idade.
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