Grafite na Praça das Comunidades, alusivo à lenda da "Bicha das Sete Cabeças"
«Vós que amais as peregrinas histórias dos duendes e
lobisomens que uma boa velhota, pelo serão das longas noites de inverno, conta
para afugentar o sono. Ou vós que, achacados a devaneios, gostais de sonhar
acordados e flanar a imaginação pelo mundo dos sonhos e das quimeras,
fantasiando heróis de lança em punho, matadores de monstros; ou vós, mais
práticos e positivos, que tendes por passatempo e regalo mergulhar o espirito
em o nevoeiro dos mitos e das lendas, para, depois de reduzido o maravilhoso às
proporções naturais, poderdes descobrir, qual historiador, a origem de um povo;
vós – digo, para quem for de prazer e gosto semelhante género de impressões –
vinde ouvir a lenda que corre em Ribeiros, do homem que matou a Bicha-fera e as
suas sete filhas e também o caso do grande milagre de Nossa Senhora Santa Maria
de Ribeiros, que na freguesia deste nome por esta ocasião aconteceu.
É uma história que não foi inventada: vazada nos moldes dos
velhos contos populares, tão sabida e verídica como passa na freguesia, ela aí
vai, tal como em tempos de criança a ouvi contar a um lavrador ribeirense, por
sinal havido por astrólogo e mui sabedor de grandes coisas.
Em tempos muito remotos (ainda a mourisma cá não tinha
vindo!) esta freguesiaque tão povoada e cultivada é agora, era então uma grande
mata de árvores como gigantes, e tão velhas como o mundo. Cheia de silvados,
ribeirais e precipícios medonhos, alumiados aqui e ali por algum raio de sol
que ao pino do meio dia a custo rompia o arvoredo, era habitada só por aguias e
corvos negros, por bichos bravos e animais ferozes, que urravam e bramiam e
enchiam as gentes de terror.
E ninguém havia que, de medo, se atrevesse a passar lá por
perto.
Mas um cristão, um guerreiro que tinha combatido muito contra
os hereges, andava peregrinando de terra em terra à procura de um lugar ermo e
agreste para aí passar a vida em penitência. O acaso ou (o que é mais certo) a
Providencia trouxe-o a estes sítios que achou acomodados ao seu intento, e
assentou morada no lugar que hoje chamam do Paço.
Muito devoto de Nossa Senhora construiu aí, por suas mãos,
uma pequena ermida, a que deu a invocação de Santa Maria de Ribeiros, que muito
venerava. Aí vivia entregue à penitencia durante a noite, e os dias passava-os
na santa ocupação de arrotear terrenos, pastorear gados, e dizimar os animais
daninhos.
De entre estes, o mais temido era uma cobra muito grande –
uma serpente! – que um vigário antigo dizia chamar-se Bicha-fera.
Sarcófago na fachada Norte da igreja de Ribeiros onde, por
tradição se diz, foi sepultado o "matador da bicha-fera"
Tinha ela o antro no sítio em que agora é a igreja, e quando
saia (o que acontecia sempre por entre o lusco-fusco) dava um assobio tão
grande e terrível que estarrecia tudo: as aves, espavoridas, levantavam logo
voo, os animais bravios recolhiam às cavernas, e ao longe os homens ficavam
tolhidos de susto.
Porque ela, como um monstro, era grande e disforme, e as
cabeças de gado que lhe passassem perto, como carneiros, porcos, touros,
devorava-as em menos de um credo, com uma destreza e força nunca vistas.
Então o santo homem, tocado por Deus, resolveu matar a
Bicha-fera: jejuou a pão e agua trinta dias consecutivos, confessou-se, e,
depois de preparado para a morte e firme na fé de que de Deus lhe viria a
força, vestiu a armadura de ferro, pegou no alfange, e, ao empardecer da tarde,
foi esperá-la.
Vinha ela de cabeça no ar arrastando pesadamente o corpo, que
era do comprimento das mais altas traves, e deitava pela boca fora baforadas de
um fumo negro, que ao longe se desfazia em largo e escuro nevoeiro.
Mal se avistaram, a Bicha-fera arremete para ele, e crava-lhe
os dentes no ferro da armadura que lhe cobria o corpo: o ferro range, estala,
quebra, faz-se em astilhas, enquanto ele fere, rasga, corta, abrindo-lhe fundas
feridas. E sem perder o sangue frio, no momento em que ela retirava a boca e a
reabria para agarrar com mais força, enterrou-lhe pela imensa goela a baixo
alfange e braço inteiros.
O monstro, soltando um rugido cavo e profundo, caia ensopado
num rio de sangue infecto.
Senhor do campo e da victoria se julgava já o santo homem
quando de repente ouviu silvos estridentes, que pareciam sair das profundezas
da terra; não sabendo o que era, todo receoso, disse de si para consigo:
Santíssima Virgem Maria, aquilo parece coisa de Belzebu…
Dizendo isto, benzeu-se, persignou-se, e passou a fazer o
credo em cruz quando parado ficou na reza ao ver, numa carreira desabalada e já
muito perto de si, as sete filhas da Bicha-fera, que vinham vingar a morte da
mãe, que corriam velozes como o raio ao grito de dor que a mãe soltara no
derradeiro alento.
Tinha já caído a noite, e ele, a quem nunca falecera o ânimo,
viu-se então atónito e perdido: sentiu pelo corpo grandes arrepios, os cabelos
em pé, e nas veias o sangue gelou de pavor.
Mas lembrando-se de recorrer ao auxílio divino, voltou-se
para a ermidinha, e disse em voz trémula, mas com toda a fé da sua alma:
Senhora Santa Maria de Ribeiros, valei-me!
Palavras não eram ditas desprendeu-se do céu uma estrela tão
reluzente como a estrela da manhã, e vem lá das alturas coim a rapidez da
flecha cortando os ares e deixando um rasto luminoso pousar em frente do campo
do combate, mesmo sobre o penedo que está ao canto do adro, ao lado da torre da
igreja.
E à vista da claridade que espalhava a estrela as filhas da
Bicha-fera ficaram suspensas, olhando como que encantadas para aquela estranha
luz que parecia fascina-las, e que as tornara imoveis e alheias a quanto se
passava em volta.
E neste meio tempo o homem de Deus, reanimando-se com a
súbita aparição da estrela e o seu braço cobrando vigor, esquartejou-as, uma a
uma, sem que elas fizessem outro movimento além de um ligeiro estremecimento a
cada cutilada que lhes descarregava.
Depois, daí a um nada, após a matança, para agradecer a Deus
a victória que acabava de obter por intercepção de sua mãe, a Virgem Maria,
ajoelhou e orou.
A sua oração foi ouvida, porque, ao terminá-la, a estrela,
subindo aos ares, foi ondulando pelo espaço até desaparecer à sua vista,
distinguindo-se daí a pouco, nas lufadas
do vento, os sons de uma música desconhecida, que eram sem dúvida o coro dos
anjos que levavam a sua oração aos pés de Deus.
Passados momentos dirigiu-se para casa muito impressionado e
doente; e daí a três dias, a sua alma, desprendendo-se do corpo, começou a
esvoaçar no espaço, seguindo a estrada do céu que três dias antes a estrela lhe
indicara.
Nesta lenda, que para o comum dos habitantes da freguesia
passa por um facto averiguado, um fundo de verdade existe, como em todas: o
facto nu, simples, racional despido de alucinação religiosa.
Uma antiga tradição ensina que o santo homem dispusera,
ordenando que o produto dos seus bens fosse aplicado na construção de uma
igreja no sítio em que aconteceu o milagroso caso, que os seus ossos se
guardassem em túmulo, e anualmente se rezasse por sua alma um responso, para o
qual deixara o legado de cinco alqueires de pão meado.
E como a confirmar a verdade da tradição, lá se vê ainda,
encravado na parede da igreja e junto à porta lateral norte um tosco túmulo de
pedra a servir-lhe de jazigo, que pelo modo como está disposto e construído
mostra ser coevo da fundação da igreja. O mesmo lugar em que a lenda diz ele
vivera e passara o resto dos seus dias religiosamente ainda cumpre o legado,
pagando a referida pensão à igreja, e o responso é anualmente rezado e
satisfeito pelo reverendo pároco no segundo domingo de Agosto com água benta
espargida sobre o túmulo.»
Z.
In: jornal “O Desforço”, 1895
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