22 de agosto de 2020

O PADRE “SANTO” QUE APRECIAVA E BENZIA OS SEIOS DE MULHERES QUE AMANENTAVAM OS FILHOS NA RUA

Capela da Senhora do Carmo anexa à Casa do Santo Velho
 


O relato de Ruy Monte no jornal “Justiça de Fafe”

 

«FIGURAS DO MEU TEMPO

Padre António

Por Ruy Monte

Eu não devia ter mais de dez anos.

Não tinha, não.

Juntamente com um companheiro da escola, comecei a ajudar à missa a este santo sacerdote.

Celebrava ele na capela do Santo Velho.

No fim de cada missa, lá vinha sempre a borracheirona e grossa criada daquela casa servir-nos o pequeno almoço. Café com leite e pão com manteiga.

Que bem nos caía aquele mata-bicho, depois de uma hora ou mais de prisão na capela!

- Presos? Presos, sim, mais de uma hora, porque o nosso querido Padre António tão santa e devotamente celebrava que chegava a parar em êxtase, na consagração.

Era preciso puxar-lhe pela alva:

-Sr. Padre António! Sr. Padre António! Já consagrou! Já consagrou!

Estremecia, como se acordasse… e voltava normalmente ao mesmo encantamento celeste…

 

 

Só conheço na língua portuguesa uma palavra que possa definir cabalmente esta figura singular da nossa terra: Santo.

Era realmente a santidade em pessoa, mas santidade verdadeiramente angélica, feita de todas as inocências da criança e dos místicos arroubos do anjo.

Tão simples, tão inocente, tão despido de amor de si próprio e tão longe das mais pequenas malícias até da criança, que dificilmente se compreendia como é que um homem pode tornar-se adulto e pode formar-se padre, sem chegar a conhecer o mundo e as suas maldades.

Mas também tão conhecida era de toda a gente a sua inocência que ninguém se escandalizava com os seus actos, por mais estranhos e anormais que parecessem.

Pois, às vezes, eram mesmo inconcebíveis em qualquer um de nós.

Toda a gente tinha a impressão de que o Padre António não andava neste mundo e que a sua evolução física e moral não tinha passado dos três ou quatro anos de outros tempos.

Era assim, certamente, que o nosso pai Adão cirandava no Paraíso Terreal, antes da parra e da maçã fatal…

Qualquer garoto o enganava com mentiras e desastres, que o punham logo a correr ou a rezar.

Qualquer mulher leviana lhe enfiava o braço na rua e o passeava no Largo, todo satisfeito com a sua companhia.

Qualquer falso pedinte lhe apanhava três ou quatro esmolas ao dia, sem dar por isso.

E era preciso que a criada Laurinda lhe escondesse dinheiro, roupas e géneros, para que ele não esvaziasse a casa!

 

 

Das muitas coisas estranhas que fazia quase diariamente vou mencionar apenas a que costumava praticar com qualquer mãe modesta, que encontrasse, na rua, a amamentar o filho.

Aproximava-se, muito lento e muito alegre, abria-lhe com toda a naturalidade a blusa, e erguia as mãos para o céu, balbuciando como os anjos hão-de cantar, certamente, no canto das onze mil virgens:

- Ai! Que tu tens muito leitinho para o teu menino! Deixa lá ver! Deixa lá ver!

Toda a mulher humilde sorria satisfeita, sem corar e sem revolta, mostrando os mimos, à vontade, que Padre António tocava com mãos de seda e logo benzia como um santo:

-Agora, agasalha-te muito e não deixes o menino passar fome.

Foi Deus que te deu esse leitinho todo para ele…

A criança continuava o seu pequeno almoço. A mulher compunha lentamente a blusa.

Padre António retirava-se, rezando as contas.

E, certamente, lá de cima, do Paraíso, Deus e os Anjos vinham espreitar tão formosa cena inocente, só própria dos tempos bíblicos, em que ainda Lusbel não reinava neste mundo…»

 

In: jornal “Justiça de Fafe”, nº 139, 11 de Outubro de 1979. P. 8.

 

Acreditando que Ruy Monte tinha dez anos de idade, esta crónica aconteceu pelos anos de 1912… O autor nasceu em 1902 


Reprodução do jornal "Justiça de Fafe", nº 139, 1972


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