O relato de Ruy Monte no jornal “Justiça de Fafe”
«FIGURAS DO MEU TEMPO
Padre António
Por Ruy Monte
Eu não devia ter mais
de dez anos.
Não tinha, não.
Juntamente com um
companheiro da escola, comecei a ajudar à missa a este santo sacerdote.
Celebrava ele na capela
do Santo Velho.
No fim de cada missa,
lá vinha sempre a borracheirona e grossa criada daquela casa servir-nos o
pequeno almoço. Café com leite e pão com manteiga.
Que bem nos caía aquele
mata-bicho, depois de uma hora ou mais de prisão na capela!
- Presos? Presos, sim,
mais de uma hora, porque o nosso querido Padre António tão santa e devotamente
celebrava que chegava a parar em êxtase, na consagração.
Era preciso puxar-lhe
pela alva:
-Sr. Padre António! Sr.
Padre António! Já consagrou! Já consagrou!
Estremecia, como se acordasse…
e voltava normalmente ao mesmo encantamento celeste…
Só conheço na língua
portuguesa uma palavra que possa definir cabalmente esta figura singular da
nossa terra: Santo.
Era realmente a
santidade em pessoa, mas santidade verdadeiramente angélica, feita de todas as
inocências da criança e dos místicos arroubos do anjo.
Tão simples, tão
inocente, tão despido de amor de si próprio e tão longe das mais pequenas
malícias até da criança, que dificilmente se compreendia como é que um homem
pode tornar-se adulto e pode formar-se padre, sem chegar a conhecer o mundo e
as suas maldades.
Mas também tão
conhecida era de toda a gente a sua inocência que ninguém se escandalizava com
os seus actos, por mais estranhos e anormais que parecessem.
Pois, às vezes, eram
mesmo inconcebíveis em qualquer um de nós.
Toda a gente tinha a
impressão de que o Padre António não andava neste mundo e que a sua evolução
física e moral não tinha passado dos três ou quatro anos de outros tempos.
Era assim, certamente,
que o nosso pai Adão cirandava no Paraíso Terreal, antes da parra e da maçã
fatal…
Qualquer garoto o enganava com mentiras e desastres, que o punham logo a correr ou a rezar.
Qualquer mulher leviana
lhe enfiava o braço na rua e o passeava no Largo, todo satisfeito com a sua
companhia.
Qualquer falso pedinte
lhe apanhava três ou quatro esmolas ao dia, sem dar por isso.
E era preciso que a criada Laurinda lhe escondesse dinheiro, roupas e
géneros, para que ele não esvaziasse a casa!
Das muitas coisas
estranhas que fazia quase diariamente vou mencionar apenas a que costumava
praticar com qualquer mãe modesta, que encontrasse, na rua, a amamentar o
filho.
Aproximava-se, muito
lento e muito alegre, abria-lhe com toda a naturalidade a blusa, e erguia as
mãos para o céu, balbuciando como os anjos hão-de cantar, certamente, no canto
das onze mil virgens:
- Ai! Que tu tens muito
leitinho para o teu menino! Deixa lá ver! Deixa lá ver!
Toda a mulher humilde
sorria satisfeita, sem corar e sem revolta, mostrando os mimos, à vontade, que
Padre António tocava com mãos de seda e logo benzia como um santo:
-Agora, agasalha-te
muito e não deixes o menino passar fome.
Foi Deus que te deu
esse leitinho todo para ele…
A criança continuava o
seu pequeno almoço. A mulher compunha lentamente a blusa.
Padre António
retirava-se, rezando as contas.
E, certamente, lá de
cima, do Paraíso, Deus e os Anjos vinham espreitar tão formosa cena inocente,
só própria dos tempos bíblicos, em que ainda Lusbel não reinava neste mundo…»
In: jornal “Justiça de Fafe”, nº 139, 11 de Outubro de 1979. P. 8.
Acreditando que Ruy Monte tinha dez anos de idade, esta crónica aconteceu pelos anos de 1912… O autor nasceu em 1902
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