9 de setembro de 2020

FIGURAS DO TEMPO DE RUY MONTE (1902 – 1986)


Praça da Republica e Avenida 5 de Outubro nos anos 20 do século passado
 

ALBINO SILVA


Nesse tempo – vai para 50 anos – ainda não havia Secretaria Judicial e os cartórios dos escrivães-notáveis espalhavam-se pela vila, em edifícios particulares.

Estou a ver o do Dourado, ali no Largo e o do Albino Leite Silva, nos baixos do Clube Fafense, à esquina que deita para a loja do saudoso Bernardino Monteiro, hoje do meu amigo Antoninho das Lobas.

O Dourado, pausado no andar e delicado no trato, era uma verdadeira figura de aristocrata e conservador, no físico e no moral.

Albino Leite da Silva era o retrato vivo do republicano irreverente e democrático dessa época. O físico, o rosto irregular e anguloso, olhos muito vivos e boca escancarada num sorriso sempre sardónico, convidava à discussão e à anedota.

Eram ambos duas figuras típicas e de destaque da nossa terra.



Embora sem o título de Dr., hoje um pouco desacreditado em medíocres sem conta, Albino Leite não era nada troixa, tinha uma razoável cultura de autodidacta e nascera para jornalista.

Fundara-se, na nossa vila, por esse tempo, um belo jornal do Partido Republicano Português, a “Democracia, uma das publicações semanais fafenses mais bem feitas de todos os tempos.

O artigo de fundo costumava ser sensato e pensado. A polémica política e religiosa era desabrida e, por vezes, temperamental. Mas os soltos da crítica e do dia-a-dia brilhavam pela graça, malícia e manha.

Pois Albino Leite passava por ser (e era-o de facto), o redactor mais fecundo e feliz.

Onde estivesse, borbotava a anedota e explodia a gargalhada.

Era, por isso, muito procurada a sua companhia.



Um dia, certo mister, inglês endinheirado, procurou-o no cartório, para cicerone duma visita à nossa vila,

- All right, My Lord, com todo o gosto.

Deixando o cartório entregue àquele simpático moço, que todos nós conhecíamos e estimávamos, o Moura de Silvares, lá partiram os dois.

O roteiro começou, naturalmente, pelo jardim do Calvário.

Mister ter gostado muito e ter feito questão de andar de barco.

- Que pena não ser maior, para poder fazer regatas Fafe!

Albino Leite gozava como um preto e comungava, com muitos «pois» e acenos de cabeça, nas críticas e impressões do Beef.

A Rua de Baixo cheirou-lhe mal. O Retiro escandalizou-o. Revoltou-se com a igreja nova incompleta. E abriu, a boca diante da Fábrica do Ferro, que julgou só poder existir na Inglaterra.



Checaram finalmente ao nosso Hospital.

Recebeu-os o Dr. Álvaro Pinto, no seu à-vontade característico.

Mister cumprimentou os doentes, quis apalpar as camas e provou a sopa do dia.

Entraram depois na capela.

Uma bela imagem de Nossa Senhora, ainda lá estava à tempos, velando os que sofrem.

Perguntou o inglês:

- Quem ser esta senhora?

- É a virgem Maria, esposa de S. José e mãe de Cristo – correu a informar o cicerone, muito sério.

Cumprimentou-a com uma vénia e rodaram para a cadeia velha, que ficava, como sabem, em frente.

Não gostou da sua falta de higiene, mas ficou chocado com a rica escultura de S. José que dominava a capela.

- Que ser este cavalheiro?

- Este é o marido daquela senhora que está no Hospital.

- Belo homem… mas ser mais velho que a senhora!

- Era mais velho, era… mas davam-se bem – comentou o cicerone.

Minutos depois, deram entrada no nosso cemitério. Achou-o muito limpo, bem situado e algo tanto monumental.

Visitaram a capela. Ao fundo, um grande Cristo ainda hoje agoniza e morre crucificado.

Nova pergunta do Mister:

- E quem ser este pobre homem?

Acode logo Albino Leite:

- Este é o filho daquela mãe que vimos no Hospital e daquele pai que está na cadeia.

O inglês murmurou, sinceramente:

- Pobre família!

Albino Leite, zombeteiro e um tanto ateu, como então era moda, não pôde deixar de concordar:

- Realmente, realmente… a mãe no Hospital, o pai na Cadeia e o filho no Cemitério…

Pobre família!

O inglês concluiu, muito pesaroso:

- Dizer bem, dizer bem, senhor Albina. Pobre família!

E foram desafogar a mágoa, com cerveja, no café do Álvaro Figurão.


RUY MONTE

In jornal “Justiça de Fafe”, nº 117, 7 de Dezembro de 1978.



NOTA: Os acontecimentos relatados nesta crónica remontam, grosso modo, ao ano de 1928. Teria Laurentino Alves Monteiro (Ruy Monte), 26 anos de idade.


Sem comentários: